KA
Autor: Velimir Khlébnikov
Tradução (notas e bibliografia): Aurora Fornoni Bernardini
Posfácio (O Mundo Precisa de Khlébnikov): Boris Schnaiderman
SINOPSE
Ka de Velimir Khlébnikov é um conto que aborda os temas do tempo, da história e da natureza cíclica da existência humana. Figura proeminente no futurismo russo, Khlébnikov usa o conceito egípcio de "Ka", o duplo, a “sombra da alma”, para refletir sobre a eterna recorrência de eventos e a interconexão de passado, presente e futuro.
A história enigmática é caracterizada por um estilo narrativo poético e fragmentário, típico da escrita de Khlebnikov, misturando referências históricas, elementos mitológicos e reflexões filosóficas, em um texto denso. Suas referências, entretanto, não se limitarem à mitologia egípcia. As palavras vivem uma vida dupla, ora é seu significado, ora sua sonoridade que dá sentido à frase, simulando assim magistralmente a própria função do Ka para os egípcios. A jornada do protagonista pode ser vista como uma metáfora para a jornada da alma por diferentes épocas, destacando a continuidade e a repetição das experiências humanas e convidando o leitor a refletir sobre a natureza do tempo, a identidade e a essência duradoura do espírito humano.
QUARTA-CAPA
KA (1916), o fascinante conto-canto de Velimir Khlébnikov – o maior inventor da poesia russa moderna –, é aqui apresentado ao leitor brasileiro, em cuidadosa e sensível tradução de Aurora Fornoni Bernardini, especialista em língua e literatura russa. Um epos caleidoscópico, transespacial e transtemporâneo, que se enquadra à maravilha, por suas características estéticas inovadoras, no programa textual da coleção Signos.
[Haroldo de Campos]
VELIMIR KHLÉBNIKOV
Viktor Vladimirovich Khlebnikov, mais conhecido pelo pseudônimo Velimir Khlebnikov (em russo: Велими́р Хле́бников, 9 de novembro [O.S. 28 de outubro] 1885 - 28 de junho de 1922), foi um poeta e dramaturgo russo, fundamental no movimento futurista russo, considerado ainda o mais inovador poeta do século XX. Roman Jakobson o definiu como "o maior poeta do nosso século".
Sobre os primeiros trabalhos poéticos de Khlébnikov praticamente nada é conhecido. As primeiras obras datadas são ainda do período em que estudava no liceu (1903-1904) e representam uma imitação do folclore russo. Em 1908, Khlébnikov muda-se para São Petersburgo e ingressa na universidade, na área de ciências naturas, mas depois muda para a Faculdade de História e Filosofia (de onde foi expulso, em 1911, por falta de pagamento), onde começa a dedicar-se à poesia, literatura e pesquisas matemático-filosóficas. Entra no círculo de poetas de São Petersburgo e visita um dos mais conhecidos salões literários daqueles anos: Bachnia (Torre; foi sob essa designação que o apartamento do poeta, dramaturgo e crítico literário Viatcheslav Ivánov entrou para a história da “Era de Prata”), onde se reuniam escritores, filósofos, pintores, músicos e artistas. Durante um breve período, aproximou-se dos simbolistas e acmeístas. Em 1908, o semanário Vesna (Primavera) publica a primeira obra de poesia em prosa de Khlébnikov, A Tentação de um Pecador (Искушение грешника), sobre a decepção com as possibilidades de conhecimento, um enredo ligado ao drama filosófico de Flaubert, La Tentation de saint Antoine.
Conheceu o grupo de jovens pintores e poetas (os irmãos Burliuk, Aleksei Kruchónykh, Elena Guro, Vassíli Kamiénski, aos quais, mais tarde, se juntaram Vladímir Maiakovski e Benedikt Livshits, Olga Rozanova e Kazimir Malevitch) que resultou na formação do grupo Guileia, em 1910-1914, e que, posteriormente, se transformou no movimento dos cubofuturistas (o cubofuturismo é considerado o resultado da interação entre poetas-futuristas e pintores-cubistas). Khlébnikov sugeriu-lhes o nome "arautos do futuro" ou "budetlianes". A primeira apresentação conjunta dos cubofuturistas na imprensa foi o almanaque poético Viveiro dos Juízes, de 1910, impresso na parte de trás de um papel de parede. Em Fevereiro de 1913, é publicado (também em papel de parede, mas num formato maior) Viveiro de Juízes II.
O ano de 1909 tornou-se um ponto de referência significativo para Khlébnikov, pois foi quando se interessou por pan-eslavismo, panteísmo pagão e pelos mitos de diferentes povos. A consciência da unidade do desenvolvimento da história e cultura da humanidade reflete-se na sua poesia e prosa, usando enredos mitológicos de diferentes povos (Deus das Donzelas / A Morte da Atlântida / A Perun / A Herdade à Noite, Genghis Khan). Nos seus primeiros trabalhos, Khlébnikov afirmava uma unidade panteísta e a igualdade de todos os seres vivos na terra (poema O Lugar Onde se Mantêm os Animais / Зверинец). Uma das ideias constantes na sua obra é a aspiração utópica de transformar o mundo com base nas relações harmoniosas entre natureza, pessoas e animais que, na sua opinião, existiam na era pré-histórica.
Tendo vivido na viragem do século, Khlébnikov sentiu o tempo aguçadamente e fez dele o principal tema da sua poesia. Considerando que tudo o que acontece no mundo não é por acaso, que tudo tem uma relação causa-efeito e uma repetibilidade regular, Khlébnikov tenta compreender os mistérios universais do tempo com a ajuda de análise científica, combinando nas suas buscas a linguística, matemática, história e poesia, e encontrar as leis matemáticas do tempo, as quais ajudariam a prever acontecimentos históricos, influenciá-los e, mais importante, a evitar as guerras("Chega de escrever com corpos, vamos escrever com palavras"). Velimir Khlébnikov considerou e insistiu que o seu sistema de estudo e desenvolvimento do tempo não se baseava na intuição ou conhecimentos misteriosos, mas no conhecimento das leis da natureza e em cálculos precisos, aos quais ele se entregou fanaticamente durante toda a sua vida (Professor e Aluno, de 1912; O Tempo – A Medida do Mundo, de 1916; Quadros do Destino, de 1922).
Khlébnikov apoiou a revolução e os bolcheviques por achar que um novo sistema estatal levaria ao surgimento da nova humanidade com a qual sonhava. Os acontecimentos revolucionários foram entendidos como uma vingança popular em virtude de séculos de opressão, e como um caminho para a humanidade manifestar a sua livre vontade (Outubro no Neva / Presente / A Noite Antes dos Sovietes). Depois da revolução de Outubro de 1917, trabalhou nos órgãos de propaganda e de educação em Astracã, Piatigorsk e Baku, e participou na campanha do Exército Vermelho no norte do Irã. No entanto, os novos poderes da Rússia trataram a obra do poeta com indiferença, considerando-o um representante da arte decadente burguesa.
Em Dezembro de 1921, o poeta regressou a Moscou. A atmosfera da Nova Política Económica(NEP), com a sua essência mercantil, parecia profundamente alheia à natureza de Khlébnikov. Aquele não era o mundo do futuro com o qual ele havia sonhado. O futurista Khlébnikov, que dividiu a humanidade em "inventores" e "adquiridores" (declaração O Trompete dos Marcianos, de 1916), considerava que o Estado do futuro, que se criaria "em nome da realização em vida de altos princípios 'contra o dinheiro'", exclui a civilização do mercantilismo mundial – "A Liberdade Vem Nua”.
Khlébnikov viveu os seus últimos anos na miséria, gravemente doente e passando fome. O poeta morreu na aldeia de Santalovo, na província de Novgorod, para onde fora descansar e recuperar forças. Foi sepultado no cemitério da aldeia. No seu caixão encontra-se a inscrição "Presidente do Globo Terrestre". Em 1960, os restos mortais de Khlébnikov foram transladados para o cemitério de Novodevitchi, em Moscou, junto aos restos de sua mãe e irmã.
AURORA FORNONI BERNARDINI
Aurora Fornoni Bernardini é uma tradutora, romancista, pesquisadora e professora universitária. Na Universidade de São Paulo (USP), além de mestrado e doutorado sobre futurismo russo e italiano, concluiu em 1978 sua livre-docência sobre Marina Tsvetáieva. Bernardini começou a estudar russo em 1958 e, no fim da década de 1960, durante o mestrado, foi convidada para lecionar no curso de Russo da USP por Boris Schnaiderman (1917–2016). É professora titular de pós-graduação nos programas de Literatura e Cultura Russa (atual LETRA) e de Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP). Traduziu, com Homero Freitas de Andrade, O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati (Nova Fronteira, 1984). Em 2003, foi finalista do prêmio Jabuti pela tradução de Cartas a Suvórin, de Anton Tchékhov (Edusp, com Homero Freitas de Andrade); em 2004, recebeu o prêmio Jabuti (segundo lugar), com o poeta Haroldo de Campos, pela tradução de Ungaretti: Daquela Estrela à Outra (Ed. Ateliê Editorial); em 2006, foi vencedora do prêmio APCA pela tradução de O Exército de Cavalaria, de Isaac Bábel (CosacNaify, com Homero Freitas de Andrade); em 2006, foi contemplada com o prêmio Paulo Rónai e em 2007 com o Jabuti (terceiro lugar) pela tradução de Indícios Flutuantes: Poemas, de Marina Tsvetáieva (Martins Fontes), de quem Bernardini ainda verteu Vivendo Sob o Fogo: Confissões (Martins, 2008); em 2014, foi finalista do Jabuti pela tradução de “Os Sonhos Teus Vão Acabar Contigo”: Prosa, Poesia, Teatro, de Daniil Kharms (Kalinka, com Daniela e Moissei Mountian).
SIGNOS
Coleção criada por Haroldo de Campos (e dirigida por ele até sua morte em 2003), é atualmente dirigida por Augusto de Campos. Nela, o projeto gráfico e o textual definem uma produção poética de Vanguarda, que trouxe para o público brasileiro, quase sempre pela primeira vez, obras de Vasko Popa, Hopkins (A. de Campos), Heine, [Brecht] (André Vallias), Guenádi Aigui (Boris Schnaidermann e Jerusa Pires Ferreira) e Maiakóvski (Boris Schnaidermann, Augusto e Haroldo de Campos), de poetas brasileiros (Murilo Mendes, Affonso Ávila, Horácio Costa, Sebastião Uchoa Leite, José Lino Grünewald, Arnaldo Antunes) e clássicos da cena grega (Agamêmnon de Ésquilo, Antígone de Sófocles, Lisístrata e Tesmoforiantes de Aristófanes, em tradução de Trajano Vieira).
DA CAPA
Imagem da capa e arte: projeto gráfico de Gerty Saruê e Lizárraga.
POR QUE LER
1. Fundamental e influente na poesia moderna e contemporânea, Khlébnikov tem poucas obras traduzidas para o português, e Ka, quase meio século após seu lançamento, é ainda seu único texto em prosa disponível ao leitor em língua portuguesa.
2. O posfácio de Boris Schnaiderman ajuda o leitor a contextualizar a obra e entender a importância desse poeta. As notas da tradutora explicam tanto as características da obra como ajudam o leitor a superar o estranhamento causado pela abordagem do autor à mitologia egípcia.
3. A obra foi revisada e atualizada ortograficamente pela tradutora e a editora.
CURIOSIDADES
1. Khlébnikov mais tarde substituiu o seu nome latino pelo eslavo Velimir (que significa "grande mundo"), o qual se tornou seu pseudónimo literário.
2. Nas páginas das suas obras futuristas muitos veem um conjunto de previsões, cuja grande maioria se mostrou profética. Eis algumas delas: (a) a proclamação da independência do Egito – em 1908, Khlébnikov predisse que em 1922 iria ser criado um "grande estado em África"; (b) a Primeira Guerra Mundial – no seu apelo aos estudantes eslavos, em 1908, ele escreveu: "Em 1915, as pessoas vão entrar em guerra e serão testemunhas da queda do estado"; (c) o colapso das Torres Gêmeas – no poema Ladomir, de 1920, o poeta escreveu: E os castelos do comércio mundial, // Onde as cadeias da pobreza brilham, // Com um rosto de regozijo e enlevo // Transformas-te um dia em cinzas; (d) a internet e a televisão – no ensaio-utópico Rádio do Futuro (Радио будущего), de 1921, ele descreve a internet com outro nome, embora o segundo nome da internet, world wide web, tenha sido adivinhado corretamente, bem como a televisão, chamada "rádio para os olhos".
3. Khlébnikov sempre viveu mal. Era solitário, fechado e pouco prático, vivia na pobreza e não tinha abrigo. Maiakovski admirava sua indiferença para com a riqueza e proveitos materiais, que assumia um carácter de "devoção e martírio pela ideia poética". Os bens de Klébnikov cabiam dentro de um saco, no qual eram colocados os manuscritos acumulados. Além de papéis, o saco continha alguns pedaços de pão e caixas de tabaco partidas. À noite, o saco servia frequentemente de almofada. Khlébnikov escreveu muito, adorava quando o publicavam, mas não fazia nada de especial por isso. Quando lhe davam as suas obras para ele corrigir, o poeta começava a escrever tudo de novo: era aborrecido para ele corrigir o que escrevera, ele conseguia apenas criar coisas novas. Os seus versos eram habitualmente preparados e entregues para publicação pelos amigos. A maior parte das suas obras não foi publicada em vida.
PALAVRAS-CHAVE
Conto, mitologia egípcia, literatura russa moderna.
TRECHOS
Traduzir Ka, Aurora Fornoni Bernardini
As palavras, nas figuras mitopoéticas de “Ka”, devem ser tratadas como inscrições litográficas: aos poucos, com a decifração das primeiras alusões, vai-se descobrindo o método da composição desse imenso mosaico polícromo, que é o conto. Vai-se vendo como as tradicionais relações de causa e efeito são destruídas graças a uma peculiar forma expressiva, onde não há momentos privilegiados, a não ser o técnico; como a desintegração da noção de tempo é acompanhada pela fragmentação do enredo; como, gradualmente, se configura a imagem de um mundo, rico em revelações esotéricas de antigas civilizações, onde os eventos múltiplos se chocam e se decompõem, ecoam e se repelem, numa dialética contínua… Exemplos? Seria diminuir o prazer da descoberta.
O que está em primeiro plano, dizíamos, nesse reino da imaginação simbolizante que é “Ka”, não é o ser humano em sua dimensão real, ascética ou fabulosa, nem o divino, interventor no destino e nos fenômenos naturais, mas sim a Língua, como fonte do conhecimento.
O Mundo Precisa de Khlébnikov!, Boris Schnaiderman
Antes que Joyce amadurecesse a sua extraordinária revolução na linguagem literária, Khlébnikov já publicava poemas em que são evidentes os elementos pré-joyceanos. Antes que dadaístas e surrealistas expusessem preto no branco a sua subversão dos valores consagrados em arte e literatura, Khlébnikov já fazia pré-dadaísmo e pré-surrealismo. Profeta de um mundo em que a técnica se alia à arte, sonhou cidades mirabolantes em meio à “velha Rússia de atoleiro” (expressão de Maiakóvski). Como impedir que este Khlébnikov assuma o lugar que lhe é devido em nossa cultura?
DO CONTO
Eu sabia que Ka estava ofendido.
Uma vez mais ele apareceu ao longe, agitando de raro e raro as asas. E senti que era um cantor solitário e que a Harpa de Sangue estava em minhas mãos. Eu era pastor; tinha rebanhos de almas. Agora não mais. Nesse ínterim alguém seco-enrugado aproximou-se de mim. Espiou ao redor, lançou um olhar significativo e tendo dito: “será! em breve!”, acenou com a cabeça e desapareceu. Fui atrás dele. Lá, um bosque. Os melros pretos e as branquetas de cabeça preta saltitavam na folhagem. Roucos bois de estepe, as esplêndidas garças cinzas, rugiam e mugiam, os bicos estendidos para o céu, sobre o galho mais alto do velho carvalho seco. Mas eis que aparece o monge, entre os carvalhos, todo preto, com o alto chapéu seco – amarrotado. Um rosto de bílis, enrugado. O carvalho tinha um oco, nele havia imagens e velas. Não tinha casca, pois há muito fora mascada por doentes de dor-de-dente. No bosque, uma penumbra eterna. Besouros-corças corriam pela casca dos carvalhos e, entrando em combate singular, furavam as asas uns aos outros, e entre os chifres negros de um vivo podia-se encontrar a cabeça seca de um morto. Bêbados de suco de carvalho, caíam em poder dos meninos. Adormeci aqui, e a melhor novela dos arameus “Leila e Médium” visitou ainda uma vez o sono do fatigado mortal.
Voltava para casa e passava em meio do velofino rebanho das pessoas. Chegou à cidade uma exposição de raridades, e lá vi um macaco empalhado com espuma nos lábios negros, de cera; a costura preta claramente visível sobre o peito; nos braços uma mulher de cera. Fui embora.
SUMARIO
KA
Notas aos Capítulos de KA
Traduzir KA
O Mundo Precisa de Khlébnikov! [Boris Schnaiderman]
Dados Biobibliográficos de Velimir Khlébnikov
Bibliografia Consultada
FICHA TÉCNICA
Autor: Velimir Khlébnikov
Tradução (notas e bibliografia): Aurora Fornoni Bernardini
Posfácio (O Mundo Precisa de Khlébnikov): Boris Schnaiderman
Coleção Signos [S.05]
Assunto: Conto, literatura russa
Impresso em brochura
15 x 20,5 cm
112 páginas
ISBN 978-65-5505-236-7
Lançamento 27 mar
EBOOK
ISBN 978-65-5505-237-4
1 x de R$59,90 sem juros | Total R$59,90 | |
2 x de R$31,53 | Total R$63,05 | |
3 x de R$21,38 | Total R$64,13 | |
4 x de R$16,30 | Total R$65,21 | |
5 x de R$13,26 | Total R$66,32 | |
6 x de R$11,24 | Total R$67,42 |