SORTILÉGIO
Abdias Nascimento
Apresentação e Prefácio: Elisa Larkin Nascimento
Participação: Léa Garcia, Jessé Oliveira e Ângelo Flávio Zuhalê
SINOPSE
Incrível a atualidade dos textos de Abdias Nascimento. A cada vez que nos deparamos com um, salta aos olhos o frescor, a pertinência e a contundência de sua prosa, de seus diálogos, de sua força, de sua capacidade como orador.
Sortilégio escancara a brutalidade do racismo no Brasil, denuncia a farsa da democracia racial e ainda ilumina e se abre para uma poderosa cultura brasileira de matriz africana, além de trazer a discussão sobre identidade.
Esta edição marca o estabelecimento do texto da peça, com partituras de Nei Lopes, e traz análise de Elisa Larkin Nascimento sobre as encruzilhadas entre o masculino e o feminino na obra, além de entrevistas com Léa Garcia, atriz protagonista da montagem de estreia em 1957, Ângelo Flávio Zuhalê, diretor da montagem de 2014, e do produtor e gestor cultural Jessé Oliveira.
QUARTA-CAPA
Sortilégio revela a sorte do povo negro sob a mortalha da democracia racial. Ao contar a história de Emanuel, negro e doutor, a peça traça a biografia de milhões. Seu drama, este drama, é nossa tragédia.
Mesmo censurada, difamada e polêmica, Sortilégio tornou-se, logo na estreia, um dos principais marcos do moderno teatro brasileiro: por seu texto inovador, pela plasticidade de sua encenação – as ilustrações deste livro o provam –, pelo olhar crítico e contundente sobre a nossa realidade, pela importância social da presença negra em cena, física e espiritualmente.
Feitiço catártico, a religiosidade de matriz africana se apresenta não como mera reprodução pitoresca, mas como poderosa simbiose entre forma e caráter. Nesse sentido, os pontos
dos orixás, por exemplo, lhe dão ritmo e integridade sígnica e estilística. Exu abre os caminhos…
Esta edição apresenta a última versão revista pelo autor. Traz ainda depoimentos da consagrada atriz Léa Garcia e do encenador Ângelo Flávio Zuhalê, e ensaios de Elisa Larkin Nascimento e Jessé Oliveira. E traz mais: a certeza de que o poder e o encanto das falas das personagens transcendem o teatro, pois, se a peça de Abdias Nascimento tem aqui sua versão definitiva, o racismo que a obra esconjura ainda persiste e tem o país inteiro como palco.
ABDIAS NASCIMENTO
Professor emérito da Universidade do Estado de Nova York, teve uma longa folha de serviços à causa do negro no Brasil. Nascido em 1914, em Franca, São Paulo, faleceu no Rio de Janeiro, em maio de 2011.
Na década de 1930, participou da Frente Negra Brasileira e criou o Teatro do Sentenciado no Carandiru, onde cumpria pena em decorrência de sua resistência contra o racismo. No Rio de Janeiro, fundou, em 1944, o Teatro Experimental do Negro – TEN, entidade que rompeu a barreira racial no teatro brasileiro, e publicou o jornal Quilombo, além de organizar eventos seminais como o I Congresso do Negro Brasileiro (1950), o concurso de arte sobre o tema do Cristo Negro (1955), e a Convenção Nacional do Negro (1945-1946), que propôs à Assembleia Nacional Constituinte de 1946 um elenco de políticas públicas voltadas às necessidades dos afrodescendentes.
Após fundar, em 1968, o Museu de Arte Negra, lecionou nas universidades Yale, Wesleyan, Temple e do Estado de Nova York (EUA) e na Universidade de Ifé (Nigéria). Participou de importantes congressos e encontros do mundo africano, levando ao âmbito internacional a, então inédita, denúncia do racismo no Brasil. Desenvolveu extensa obra artística sobre temas da cultura afro-brasileira e realizou exposições em museus, galerias e universidades estadunidenses.
De volta ao Brasil, criou, em 1981, o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), que realizou o III Congresso de Cultura Negra das Américas (1982). Participou da fundação do Movimento Negro Unificado (1978) e do Memorial Zumbi (1980).
Como deputado federal (PDT-RJ,1983-1986), apresentou o primeiro projeto de lei propondo políticas públicas de ação antirracista voltadas para a população afrodescendente. Foi senador da República (PDT-RJ, 1991, 1997-1999) e titular fundador de duas secretarias do Governo do Estado do Rio de Janeiro: a Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileiras (Seafro) (1991-1994) e a de Direitos Humanos e Cidadania (1999).
Artista plástico de destaque, obteve exposições individuais de sua obra no Palácio de Cultura Gustavo Capanema (1988), no Salão Negro do Congresso Nacional (1997) e na Galeria Debret (Paris, 1998).
Escreveu, entre outros títulos, Sortilégio (1959/1979), Dramas Para Negros e Prólogo Para Brancos (1961), O Negro Revoltado (1968/1982), O Genocídio do Negro Brasileiro (1978, com reedição em 2016 pela Perspectiva), Sitiado em Lagos (1981), Axés do Sangue e da Esperança (1983), Orixás: Os Deuses Vivos da África (1995), e O Brasil na Mira do Pan-Africanismo (2002). O Quilombismo: Documentos de Uma Militância Pan-Africanista (2002, Perspectiva, 2019).
PARALELOS
A coleção Paralelos traz obras de ficção e narrativas poéticos com qualidade literária e originalidade
DA CAPA
Imagem da capa: Cena de Sortilégio, montagem de 2014, com direção de Ângelo Flávio Zuhalê.
TRECHOS
NELSON RODRIGUES SOBRE A PEÇA
O que eu admiro em Abdias do Nascimento é a sua irredutível consciência racial. Por outras palavras: trata-se de um negro que se apresenta como tal, que não se envergonha de sê-lo e que esfrega a cor na cara de todo o mundo.
Aí está Sortilégio, o seu mistério, que vive, justamente, do seu dilaceramento de negro. Eu já imagino o que vão dizer três ou quatro críticos da nova geração: - que o problema não existe no Brasil etc. etc. etc. Mas existe.
E só a obtusidade pétrea ou a má-fé cínica poderão negá-lo. Não caçamos pretos, no meio da rua, a pauladas, como nos Estados Unidos. Mas fazemos o que talvez seja pior. A vida do preto brasileiro é toda tecida de humilhações. Nós o tratamos com uma cordialidade que é o disfarce pusilânime de um desprezo que fermenta em nós, dia e noite. Acho o branco brasileiro um dos mais racistas do mundo.
A primeira condição de Sortilégio para ser válida como expressão artística de um problema brasileiro está na base da autenticidade. A peça nutre-se de toda a experiência vital do autor. Ele é o "dr. Emanuel"; 'a semelhança do seu herói, foi atirado no xadrez, como um objeto "doutor africano"; e se fosse casado com uma esposa branca estaria sempre diante do limite do crime, do suicídio, da loucura.
Eis a grandeza da personagem: a exasperada solidão. E que grande e quase intolerável poder de vida tem Sortilégio! Na sua firme e harmoniosa estrutura dramática, na sua poesia violenta, na sua dramaticidade ininterrupta, ela também constitui uma grande experiência estética e vital para o espectador. Não tenham dúvidas que a maioria da crítica não vai entendê-la.
[...] Vão se atirar contra Sortilégio. Mas nada impedirá que o mistério negro entre para a escassa história do drama brasileiro.
Publicado no jornal Última Hora, 26 ago. 1957. Republicado em Nelson Rodrigues, “Abdias: O Negro Autêntico”, Teatro Experimental do Negro: Testemunhos, Rio de Janeiro: GRD, 1966.
TRECHOS DO LIVRO
1
Invocam Obatalá… para eles o maior dos orixás.Depois vem Xangô… Oyá-Iansã… Omulu…Iemanjá… É Deus demais para uma única eternidade.À meia-noite desce Exu. O pessoal vemcumprir obrigação aí no peji. Então eu aproveitoo caminho livre. (Bem-humorado.) Exu é um boa--vida. Não pode ouvir doze badaladas sem sair atrásde charuto e cachaça… (pensativo.) Imaginem… eufalando como se também acreditasse nessas bobagens.Eu, o doutor Emanuel, negro formado, queaprendeu o catecismo e em criança fez até a primeiracomunhão! Pobre da velha mãe… trabalhava duro…lavando roupa pra fora… limpando… cozinhando…Às vezes até à noite… ganhando dinheiro para osmeus estudos… Mas na hora de dormir ela nãofalhava: sempre ao meu lado.
2
Emanuel: Se estava tão certa da lei, por que chorou? Vi amargura no seu rosto, quando o delegado gritou.
Voz Agressiva: Acabe imediatamente com esses fricotes, vagabunda.
Ifigênia (sincera): Amargura? Sim, é verdade. A eterna amargura da cor. Naquele instante compreendi que a lei não está ao lado da virgindade negra… Mas você estragou tudo. Por que agrediu o delegado? Tem prazer em provocar policiais? Eles te derrubaram… bateram tanto em você! No corpo, na cabeça… sangue espirrando… Oh, meu Deus! (Pausa breve.) O delegado rasgou sua carteirinha de advogado, jogou os pedaços na cesta de lixo e ordenou vociferando.
Voz Agressiva: Meta o doutor africano no xadrez!
3
Emanuel: São eles. Vêm subindo. Me levaram as duas; a esposa e a mulher amada. Me roubaram tudo. Melhor. Muito melhor assim. (Gritos de triunfo, intercalados com riso alto até o momento em que entra no peji.) Agora me libertei, para sempre. Sou um negro liberto da bondade. Liberto do medo. Liberto da caridade e da compaixão de vocês. Levem também esses molambos civilizados, brancos. (Enquanto fala, tira a camisa, as calças, fica só de tanga. Vai atirando tudo pela ribanceira abaixo.) Tomem seus troços! Com estas e outras malícias vocês abaixam a cabeça dos negros… Esmagam o orgulho deles. Lincham os coitados por dentro. E eles ficam domésticos, castrados, bonzinhos, de alma branca. Comigo se enganaram. Nada de mordaça na minha boca. Imitando vocês que nem macacos amestrados. Até hoje fingi que respeitava vocês, que acreditava em vocês. Margarida muito convencida de que eu estava fascinado pela brancura dela! Uma honra para mim ser chifrado por uma loura. Branca azeda idiota. Tanta presunção e nem percebia que eu simulava… procedia como pessoa educada, ouviu? Como mulher você nunca significou nada para mim. Olha, quem tinha nojo era eu. Aquelas coxas amarelecidas que nem círio de velório me reviravam o estômago. Seu cheiro? Horrível! O pior, teus seios mortos de carne de peixe. E o nosso filho… Lembra-se? Outro equívoco, novo engano de sua parte. Você o matou para se desforrar da minha cor, não foi? Mas ele era também seu sangue. Isso você deixou de levar em conta. Que eu não poderia amar uma criatura que tinha a marca de tudo aquilo que me humilhou, me renegou. Desejei um filho de face bem negra. Escuridão de noite profunda, olhos parecendo um universo sem estrelas… Cabelos duros, indomáveis… Pernas talhadas em bronze, punhos de aço para esmagar a hipocrisia do mundo branco.
TRECHO 4
Emanuel: Transitório mundo! Mundo eterno, cujo chão se alimenta da nossa carne. Carne-lama amassada à tepidez de nosso sangue. (Espia a ribanceira.) Ainda apontam suas armas inúteis. (Sorri.) Não sabem que recuperei meu tom de voz. Ignoram que reencontrei minhas próprias palavras no meu Exu que resgatei. (Ensaia um passo sobre o abismo.) Vou percorrer estas trevas cósmicas.
Filha II: Com cuidados, Emanuel!
Emanuel: Emanuel, eu? (Sorri.) Não dividi o pão nem multipliquei o peixe. Não separei o meteoro e a rosa. Como poderia eu tornar o homem estranho à sua pele? Inimigo do espírito que sustenta seu próprio corpo?
Filha I: Ai! Que não mais se confunda.
Filha III: Por que, desgraçado Atunda?
Emanuel: Cravados em mim estão meu Olorum, meu Exu, meu Ogum. A hora incoada palpita na batida do meu sangue, no rolar da minha alma. O pássaro de Oiá [Oyá]-Iansã pousou ao meu ombro. Depressa, sirvam meu vinho… minha palma…
SUMARIO
Apresentação [Elisa Larkin Nascimento]
Prefácio: O Sortilégio das Eras [Elisa Larkin Nascimento]
Sortilégio
Sortilégio Para o Devir do Teatro Negro [Jessé Oliveira]
Entrevistas
Com Léa Garcia
Com Ângelo Flávio Zuhalê
Sobre o Autor e os Colaboradores
Obras de Abdias Nascimento
FICHA TÉCNICA
Autor: Abdias Nascimento
Apresentação e Prefácio: Elisa Larkin Nascimento
Participação: Léa Garcia, Jessé Oliveira e Ângelo Flávio Zuhalê
Assunto: Teatro / Dramaturgia
Coleção: Paralelos
Formato: Brochura
Dimensões: 14 x 21 cm
160 páginas
ISBN 9786555051087
E-book: 9786555051094
Lançamento: 27/05/2022
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