TEATRO EXPERIMENTAL DO NEGRO: TESTEMUNHOS E RESSONÂNCIAS
Edição comemorativa dos 80 anos do TEN
[Reedição revista e ampliada da edição de 1966]
Abdias Nascimento, Elisa Larkin Nascimento e Jessé Oliveira (orgs)
Apresentação (2025): Elisa Larkin Nascimento e Jessé Oliveira
Prefácio (1966): Efrain Thomás Bó
SINOPSE
Edição Comemorativa dos 80 Anos
A reedição do livro Teatro Experimental do Negro: Testemunhos e Ressonâncias, que celebra os 80 anos da primeira encenação do TEM, destaca sua importância e oferece uma visão abrangente sobre a contribuição do TEN para a cultura e para a sociedade brasileira. A nova edição foi coordenada por Elisa Larkin Nascimento e Jessé Oliveira e organizada em três partes: Testemunhos, com o textos e autores que contribuíram para a edição original de 1966, organizada por Abdias Nascimento, fazendo o registro de sua trajetória dos seus primeiros vinte anos, incluindo nomes importantes como Efrain Tomás Bó, Guerreiro Ramos, Nelson Rodrigues e Florestan Fernandes.
A nova edição, sob a direção de Elisa Larkin Nascimento e Jessé Oliveira, traz novos testemunhos de artistas e intelectuais contemporâneos, refletindo a continuidade deste legado e de como o TEN permanece como referência inescapável para os novos autores, seja pela qualidade das montagens ou pela abordagem à questão do negro no Brasil.
Inclui, ainda, um ensaio fotográfico com imagens da época de autoria do fotógrafo José Medeiros, grande colaborador do TEM e parceiro próximo de Abdias Nascimento.
Ensaio Fotográfico de José Medeiros
O ensaio fotográfico de José Medeiros complementa a narrativa do TEN, capturando momentos significativos da companhia.
Medeiros foi um Fotógrafo renomado e amigo do TEN, Medeiros contribuiu com um acervo valioso das atividades do grupo. As imagens refletem a essência, o comprometimento dos atores e a trajetória do teatro negro no Brasil, a partir das encenações do grupo e serve como um testemunho visual da luta e da arte do TEN.
Legado e Impacto Contemporâneo
O livro é um registro vital da resistência cultural e artística dos negros no país e evidencia como o legado do TEN continua a influenciar o teatro negro contemporâneo no Brasil, com novas gerações se apropriando de sua história e a nova edição do livro inclui reflexões de artistas atuais sobre a relevância do TEN.
QUARTA-CAPA
O TEATRO EXPERIMENTAL DO NEGRO (TEN), criado por Abdias Nascimento, foi um projeto revolucionário que utilizou o teatro como arma política e pedagógica para combater o racismo, promover a valorização da cultura negra e inserir a população afro-brasileira no panorama artístico e intelectual do país.
Muito mais do que um grupo de teatro, foi um movimento que articulou cultura, educação e militância para contestar o mito da democracia racial e abrir caminho para a luta por direitos e representatividade negra no Brasil.
Teatro Experimental do Negro: Testemunhos e Ressonâncias, organizado por Elisa Larkin Nascimento e Jessé Oliveira, vai além da simples reedição da obra original – editada por Abdias Nascimento para celebrar o 20º aniversário do grupo e reunindo a recepção crítica de grandes mestres do teatro brasileiro do século passado. Além de um ensaio com imagens do fotógrafo José Medeiros, esta nova edição apresenta reflexões contemporâneas sobre a trajetória, a relevância e o legado vivo do Teatro Experimental do Negro, assinadas por importantes nomes das artes e da cultura brasileira atual.
Mais que uma homenagem aos oitenta anos da estreia do grupo, o que se busca com esta obra é destacar a contínua luta dos artistas negros brasileiros, no palco e na sociedade, por um país em que todos tenham o direito de brilhar e de ser protagonistas de sua própria história.
ORGANIZADORES
ABDIAS NASCIMENTO
Professor emérito da Universidade do Estado de Nova York, teve uma longa folha de serviços à causa do negro no Brasil. Nascido em 1914, em Franca, São Paulo, faleceu no Rio de Janeiro, em maio de 2011.
Na década de 1930, participou da Frente Negra Brasileira e, em 1942, criou o Teatro do Sentenciado na Penitenciária do Carandiru, onde cumpria pena em decorrência de sua resistência contra o racismo. No Rio de Janeiro, fundou, em 1944, o Teatro Experimental do Negro (TEN), entidade que rompeu a barreira racial no teatro brasileiro, e publicou o jornal Quilombo, além de organizar eventos seminais como o i Congresso do Negro Brasileiro (1950), o concurso de arte sobre o tema do Cristo Negro (1955), e a Convenção Nacional do Negro (1945-1946), que propôs à Assembleia Nacional Constituinte de 1946 um elenco de políticas públicas voltadas às necessidades dos afrodescendentes.
Após inaugurar, em 1968, o Museu de Arte Negra, lecionou nas universidades Yale, Wesleyan, Temple e do Estado de Nova York (EUA) e na Universidade de Ifé (Nigéria). Participou de importantes congressos e encontros do mundo africano, levando ao âmbito internacional a, então inédita, denúncia do racismo no Brasil. Desenvolveu extensa obra artística sobre temas da cultura de tradição africana no Brasil e no mundo e realizou exposições em museus, galerias e universidades estadunidenses. De volta ao Brasil, criou, com Elisa Larkin Nascimento, em 1981, o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), que realizou o III Congresso de Cultura Negra das Américas (1982). Participou da fundação do Movimento Negro Unificado (1978) e do Memorial Zumbi (1980).
Como deputado federal (PDT-RJ,1983-1986), apresentou os primeiros projetos de lei propondo políticas públicas de ação antirracista voltadas para a população afrodescendente. Foi senador da República (PDT-RJ, 1991, 1997-1999) e titular fundador de duas secretarias de governo do Estado do Rio de Janeiro: a Secretaria Extraordinária de Defesa e Promoção das Populações AfroBrasileiras (Seafro; 1991-1994) e a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania (1999).
Artista visual de destaque, realizou exposições individuais de sua obra no Palácio de Cultura Gustavo Capanema (1988), no Salão Negro do Congresso Nacional (1997) e na Galeria Debret (Paris, 1998), Itaú Cultural (2016), Museu de Arte Contemporânea de Niterói (2019), Museu de Arte de São Paulo – Masp (2022), Instituto Inhotim (2021-2024).
Escreveu, entre outros títulos, Sortilégio (1959/1979; reedição Perspectiva, 2022), Dramas Para Negros e Prólogo Para Brancos (1961), O Negro Revoltado (1968/1982), O Genocídio do Negro Brasileiro (1978; reedição Perspectiva, 2016), Sitiado em Lagos (1981, reedição Perspectiva, 2024), Axés do Sangue e da Esperança (1983), Orixás: Os Deuses Vivos da África (1995), O Brasil na Mira do Pan-Africanismo (2002) e O Quilombismo: Documentos de Uma Militância PanAfricanista (2002, reedição Perspectiva, 2019).
ELISA LARKIN NASCIMENTO
Possui graduação, mestrado e juris doctor cum laude pela Universidade do Estado de Nova York (1976, 1978 e 1981) e doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (2000). Atualmente dirige o Ipeafro – Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros. Como diretora do Ipeafro ela idealizou e organizou os fóruns Educação Afirmativa Sankofa de 1991, 1993, 2007, 2010, 2011 e 2012, bem como o curso Sankofa: Conscientização da Cultura Afro-Brasileira, realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro no período de 1984 a 1995. Entre suas publicações, destacam-se Pan-Africanismo na América do Sul (Vozes, 1981; Perspectiva, 2026) e Abdias Nascimento: A Luta na Política (Perspectiva, 2021). Realizou a curadoria da megaexposição Abdias Nascimento Memória Viva (Rio de Janeiro; Brasília; Salvador, 2004-2006) e da exposição África-Brasil: Ancestralidade e Expressões Contemporâneas (Rio de Janeiro, 2011). Participou da curadoria do projeto Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra (Instituto Inhotim, 2021-2024).
JESSÉ OLIVEIRA
Mestre em Artes Cênicas, especialista em Teoria do Teatro Contemporâneo e formado em Direção Teatral pelo Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi coordenador de Artes Cênicas da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre, diretor do Instituto Estadual de Artes Cênicas do Rio Grande do Sul (Ieacen; 2020-2021), do Teatro de Arena de Porto Alegre (2020-2021) e da Casa de Cultura Mario Quintana (2016-2020). Recebeu em 2007 o prêmio Florêncio de Melhor Espetáculo Estrangeiro, pela Associação de Críticos do Uruguai, com Hamlet Sincrético. É professor e foi coordenador do Curso de Tecnologia em Produção Cênica, na Faculdade Monteiro Lobato (Fato) e ministrou a disciplina de Técnica Teatral, na Pós-Graduação da Universidade de Caxias do Sul (UCS). À frente do grupo Caixa-Preta desde sua criação, dirigiu, entre outros, os espetáculos Transegun (2003), Hamlet Sincrético (2005), Madrugada, me Proteja (2006), Antígona Br (2008), O Osso de Mor Lam (2009) e Ori Oresteia (2015). É o idealizador e curador do Encontro de Arte de Matriz Africana e editor geral da revista Matriz.
PERSPECTIVAS
A coleção Perspectivas, lançada em 1995, oferece ao público brasileiro uma série que pretende reunir textos importantes, e extensos na abrangência do assunto tratado, nas áreas teatral (O Cotidiano de uma Lenda, de Cristiane Takeda), de artes plásticas (Fios Soltos, de Paula Braga), biográfica (Eis Antonin Artaud, de Florence de Mèredieu; Mikhail Bakhtin, de Katerina Clark; Todos os Corpos de Pasolini, de Luiz Nazario; e Diderot de Arthur Wilson), histórica (A Alemanha Nazista e os Judeus, de Saul Friedländer), antropológica (Afrografias da Memória, de Leda Martins) e literária (Pessoa e Personagem, de Michel Zéraffa).
DA CAPA
Imagem da capa: Antônio Barbosa em cena de O Imperador Jones, de Eugene O’Neill. Theatro Municipal do Rio de Janeiro, 1945. Foto de José Medeiros.
ORELHA
Uma vez Abdias Nascimento, que é negro, quis ser negro com o corpo e com a alma. E mostrar corpo e alma negros. O teatro foi o meio, e Abdias encontrou, entre outros, Aguinaldo de Oliveira Camargo, Arinda Serafim, Ironides Rodrigues, Ruth de Souza, Claudiano Filho, Léa Garcia – negros –, que no palco desvelaram dramaticamente a alma para dar corpo ao mais transparente, mais preciso, mais autêntico movimento: o movimento da negritude brasileira.
O que significa essa negritude, tão firme hoje na África, Europa e América, negritude que nem tinha o nome de negritude nos primeiros dias do Teatro Experimental do Negro? Os testemunhos a viram nascer, tomar corpo, armar-se em sua abstrata textura e dizer simples e profundamente: o negro, negro que é, tem olhos e ouvidos e consciência para perceber o mundo e qualificá-lo, transfigurá-lo e enriquecê-lo, reinterpretando-o com seus calejados olhos e ouvidos negros de hoje. [Efrain Tomás Bó, Prefácio]
O QUE DIZEM OS ORGANIZADORES
Espírito e Fisionomia do Teatro Experimental do Negro, Abdias Nascimento
O Teatro Experimental do Negro não é, apesar do nome, apenas uma entidade de objetivos artísticos. A necessidade da fundação desse movimento foi inspirada pelo imperativo da organização social da gente de cor, tendo em vista a elevação de seu nível cultural e seus valores individuais. Entretanto, o espírito associativo não é algo inato. Ou, melhor ainda, o espírito associativo é atributo da massa esclarecida e de elevado padrão cultural. Daí ser quase impossível, como se pode depreender da observação da vida brasileira, associar homens e mulheres em função, apenas, de objetivos sociais.
Reconhecemos no início de nosso empreendimento a necessidade de apelar para uma tática sociológica, ou seja, para um tipo de ação não idealística e, tampouco, ideológica, mas sensível e ajustada à configuração psicossocial, cuja transformação almejávamos. Com efeito, se estudarmos a vida das associações de homens de cor neste país, colheremos a lição de que a maioria delas têm fracassado precisamente por carecerem daquilo que poderemos chamar de atitude sociológica. Ora nasciam da revolta e organizavam-se somente para lutar – de modo direto e imediato – contra a injustiça e a discriminação de cor, agravando, assim, o processo de solução do problema de uma grande parte da população brasileira; ora inspiravam-se em intuitos políticos – algumas vezes legítimos e, a maioria das vezes, inconfessáveis – e, nesse caso, serviam quase sempre a interesses pessoais. De um modo ou de outro, a vida de tais associações era efêmera ou, quando não, de vida atuante precária, delas resultando quase nada de positivo, a não ser um diversionismo inconsequente.
Qual a razão disso? Por que motivo se extinguiram, ou permanecem carecendo de importância, sem nenhum resultado em seus trabalhos, tantas sociedades de objetivos tão nobres e acertados, muitas até dirigidas por homens capazes? Parece-nos, e tudo indica, que o motivo reside no fato de que, embora os fins dessas associações fossem, por vezes, corretamente identificados, os meios escolhidos para alcançá-los se mostraram inadequados.
É esse um fenômeno muito comum na vida do grupo e do indivíduo. Identificados os objetivos, é necessário assegurar a eficácia dos meios para que o bom êxito seja obtido. Donde se conclui que os responsáveis por essas sociedades tiveram, em muitos casos, habilidade para a compreensão e uma inabilidade para a ação.
Há, portanto, em todo movimento social, a ordem dos meios e a ordem dos fins, ambas inter-relacionadas.
Apresentação, Elisa Larkin Nascimento e Jessé Oliveira
O TEN contou com a colaboração e a parceria de personalidades como Nelson Rodrigues, Ziembinski, Bibi Ferreira, Cacilda Becker, Enrico Bianco, Tomás Santa Rosa, entre outros, mas se manteve firme no seu propósito de ser uma iniciativa conceituada e dirigida por artistas e intelectuais negros, e por isso pagou o preço caro do apagamento histórico. A narrativa hegemônica do teatro moderno o ignorou e, apesar das publicações que Abdias fez questão de lançar, o TEN continuou à margem da historiografia do teatro brasileiro, como se não houvesse deixado registro de sua significativa contribuição cultural e estética.
Reeditar este livro, portanto, tem um significado profundo, análogo àquele que as pessoas negras e seus coletivos experimentam diariamente ao conseguir superar, com pequenas ou grandes conquistas e vitórias, o fato de viverem invisibilizadas, silenciadas e colocadas à margem das inúmeras riquezas e vantagens que a sociedade moderna oferece aos seus cidadãos. O Teatro Experimental do Negro espelha, em sua trajetória, essa capacidade do povo negro de seguir criando caminhos de construção de sua vida em liberdade, apesar das intermináveis amarras que lhe são impostas.
TRECHOS DO LIVRO
Eles Também São Filhos de Deus, Franklin Oliveira
No Theatro Municipal fizeram esses negros a sua estreia. Até o último momento, eles lutaram com as maiores dificuldades, tendo sido negado a eles até mesmo o direito de realizar um ensaio geral conjuntamente com a última experiência de luzes. E isso porque, à hora em que tal devia se dar, o palco do Municipal foi invadido por uma sarabanda de moças grã-finas e sofisticadas que se arrojaram a prioridade de um ensaio para mais um espetáculo tipo feira de vaidades. Também não tiveram muita sorte escolhendo a noite da estreia, que coincidiu com a rumorosa comemoração do Dia da Vitória. Enquanto na avenida estouravam bombas, explodiam ritmos de samba e o povo se espraiava numa alegria carnavalesca, onde a hilaridade dos cordões se misturava às exaltações cívicas dos discursos e comícios improvisados ao pé de qualquer escadaria, o Municipal parecia destinar-se a ficar num abandono, que fosse quebrado apenas pela presença de alguns incorrigíveis aficionados do teatro. Entretanto, tal não aconteceu. A uma assistência nacional enorme, possivelmente pouco crédula, juntava-se a presença ainda mais incrédula de alguns americanos, homens que naturalmente viram O Imperador Jones na Broadway e na cinematização que Hollywood lhe deu através do tremendo poder expressivo de Paul Robeson.
Encolhido em sua cadeira, o repórter tinha a seu lado um desses chicléticos sobrinhos de Tio Sam. Ele foi o termômetro seguro para avaliar a intensidade febril em que ia crescendo o espetáculo. No início das primeiras frases do diálogo entre Brutus (Aguinaldo de Oliveira) e Smithers (Sadi Cabral), vimos o americano inteiramente distanciado da atmosfera dramática que se ia lentamente criando. Mas, à proporção que esta crescia, num espanto de tragédia irresistível e contagiante, o nosso vizinho ia crescendo à hipnose de Aguinaldo de Oliveira, à força dramática que escapava de suas palavras e irradiava de seus gestos. Foi, assim, através de uma sensibilidade – que deve ter visto a figura de Brutos Jones vivida através da experiência artística norte-americana – que senti a sinceridade quase genial e simplesmente intuitiva da exegese de Aguinaldo de Oliveira.
A Raiz e o Horizonte, Rudinei Borges dos Santos
Para compreendermos a importância do TEN no teatro contemporâneo, é necessário ir além da cronologia. A história do teatro brasileiro é, antes de tudo, uma dialética de formas e forças. O TEN inscreve-se nesse processo como instância de ruptura, de virada necessária. Em vez de aceitar passivamente os lugares estereotipados, relegados aos atores negros – os criados, os ingênuos, os caricatos – o grupo propôs uma subversão ontológica: não apenas representar o negro, mas construir um teatro do negro, com sua linguagem, sua memória e sua estética. Esse gesto é revolucionário porque toca no nervo mais sensível da cultura brasileira: o mito da democracia racial.
Hilton Cobra, Entrevista
Não, não, não… acho que Abdias não ficou satisfeito com o fato de o teatro estar no palco, de o Teatro Experimental do Negro estar no palco, não. Era necessário buscar um entendimento, um conhecimento. Era necessário formar, era necessário ser um mestre. Seria necessário, absolutamente necessário, trabalhar fora do palco, por detrás do palco. Não só a dramaturgia, não só a estética, não só o poder de fala dentro do palco, não. Era preciso trabalhar a política racial através do teatro, era necessário trabalhar por fora do palco.
Abdias, Eterno Sol em Plena Jornada, Onisajé
Os quilombos são uma das primeiras experiências de liberdade nas Américas. Eles tinham uma estrutura comunitária baseada em valores culturais africanos. Marco Aurélio Luz destaca a importância dos quilombos como formas de resistência dos povos negros à escravidão, ressaltando que esses espaços foram mais do que simples esconderijos de negras e negros em fuga – constituíram-se como verdadeiros “reinos africanos no Brasil”4. Os quilombos foram, e ainda hoje são, lugares de empretecimento de resistência contra a escravidão, lugar de expansão dos valores africanos. O quilombismo de Abdias propõe esse legado negro como referência básica de uma proposta de mobilização política da população afrodescendente nas Américas, com base na sua própria experiência histórica e cultural. É uma proposta para a construção de um parâmetro civilizacional afro-brasileiro que visa um Brasil multiétnico e pluricultural.
Sobre Articulações Poético-Políticas, Soraya Martins Patrocínio
A veiculação da experiência e da memória negras, a decomposição de estereótipos racistas e a luta pela reposição da negra e do negro de objeto enunciado a sujeito enunciador da sua própria história e fabulador de identidades e linguagens, em cena, são princípios firmados pelo TEN e que até hoje pulsam como elementos dinamizadores dos processos criativos das e dos artistas de mão coloridas. Esses princípios deságuam num ponto estratégico do TEN, que, cada vez mais, faz parte do processo de composição estética de artistas negros e negras: a criação de uma dramaturgia própria.
Espelhos Negros, Cristiane Sobral
Seriam os procedimentos dos teatros negros diferentes dos padrões do teatro branco, ocidental, de moldes eurocêntricos? Aos poucos, descobrimos que as perguntas levavam a caminhos mais interessantes do que as respostas, quase sempre múltiplas. Seria possível constituir uma estética negra sem trazer consigo os cristalizados moldes da estética “branca” brasileira?
[...]
Enxergar as estéticas negras considerando os alvos véus que ainda revestem o teatro brasileiro é uma das formas de produzir outros lugares de criação e poéticas de resistência na invenção por meio de pontos de ruptura e paradoxos.
Espelhos Negros, Depoimento, Eugênio Lima
Mas, retornando ao TEN, ele era uma companhia toda negra, e ainda tinha as presenças de Ruth de Souza e Léa Garcia! Era “nós contra a rapa”, era fantástico, porque eu achava uma ideia ousada. E, desde sempre, o que me intrigava era a conjunção dessas duas palavras: “experimental” e “negro”. Ainda hoje, isso me inquieta bastante, porque, às vezes, vejo as pessoas focando no fato de que o TEN era um teatro negro, formado por corpos negros, na tentativa de criar uma dramaturgia negra e de se estabelecer um vocabulário de representação negra para o campo das artes cênicas que, como todo campo majoritariamente branco, era profundamente racista. Mas muitas vezes as pessoas se esquecem da palavra “experimental”. E ela não está aí à toa, porque, na minha opinião, o TEN não queria ser uma estrutura tradicional.
Experimentando o Teatro Negro de Antes...e de Depois, Aldri Anunciação
O cruzamento estético e poético entre as narrativas que escrevemos hoje e as produções do Teatro Experimental do Negro é, antes de tudo, rastro de um legado e a prova de que o trabalho de todos aqueles artistas e técnicos que operaram na engrenagem de cena dos espetáculos do TEN permanece vivo em nós, artistas contemporâneos, que seguimos expandindo esse horizonte. As aproximações poéticas são evidentes: assim como o TEN, atualmente buscamos construir personagens negras que escapem dos estereótipos historicamente impostos, explorando uma existência para além da subserviência.
TEN: Palco do Nascedouro do Psicodrama no Brasil, Maria Célia Malaquias
No psicodrama, assim como na sociedade brasileira como um todo, houve um apagamento do trabalho de Abdias Nascimento e de Guerreiro Ramos, dois homens pretos visionários, pioneiros. Aconteceu em nosso meio psicodramático algo semelhante ao que acontece em muitas áreas, em especial, nas áreas do conhecimento. Invariavelmente, somos nós, pesquisadoras pretas, pesquisadores pretos, que buscamos nos debruçar com afinco, seguir pequenos sinais, pequenas pistas, para descobrir e revelar a relevante contribuição das mulheres negras, dos homens negros, na construção do nosso país.
Seu Abdias, a Coisa tá Preta, Bárbara Santos
Em nosso processo produtivo e investigativo, foi fundamental saber mais sobre sua importância, Seu Abdias, para a própria concepção do teatro do oprimido. Ao nos questionarmos como Augusto Boal, um homem branco de classe média, carioca da Penha, de família portuguesa dona de padaria, havia chegado a um teatro que se reivindicava do e para o oprimido. Uma das personalidades de destaque que encontramos foi justamente o senhor, Seu Abdias. Sua generosidade artística, cultural e intelectual abriu portas de terreiros, de botecos, de rodas de samba e de salas de ensaios para o jovem Augusto Boal. Sua amizade criou pontes de contato para que Augusto Boal pudesse encontrar poetas, intelectuais e heróis negros. Além disso, juntos, vocês criaram espaços de reflexão sobre racismo e, sobretudo, sobre opressão. Dois homens, dois artistas em um encontro criativo-colaborativo. Abdias Nascimento mostrando o sentido de negritude e do racismo dentro da questão de classe. Augusto Boal contribuindo com sua dramaturgia para transformar histórias e experiências em obras teatrais. Orgulha-nos saber das trocas intelectuais, humanas e criativas estabelecidas entre o senhor, Seu Abdias, e nosso mestre Augusto Boal.
Algumas Reflexões Sobre o TEN e o Futuro, Geo Britto
Questiono novamente: como seria ter um TEN, e qual o papel de um Teatro Negro hoje? Uma questão para grupos de oprimidos diversos e das mais diferentes linguagens, inclusive para o próprio teatro do oprimido. Esse é um questionamento permanente na Escola de Teatro Popular. Atualmente, temos muitos mais grupos formados por artistas negros. Contudo, essa grande quantidade de grupos não vem, muitas vezes, junto com uma crescente radicalidade. Se, em 1944, o TEN assumia uma radicalidade diante das relações sociais existentes, hoje, há um movimento de incorporação do teatro negro ao mercado. Assim, pode-se servir ao mercado para cumprir o papel de encobrir e atenuar os reais conflitos de uma sociedade racista, na lógica exclusiva da representação de um capitalismo negro, como diria Fred Hampton.
O Caráter Educativo do Teatro Experimental do Negro, Jeruse Romão
O caráter educativo do Teatro Experimental do Negro está vivo. O presencio ativo e estruturante nos grupos e coletivos de teatro negro que se espalham por todo território nacional. Na luta das empregadas domésticas, no quilombismo como referencial de organização coletiva, na Educação de Jovens e Adultos, nas reformulações das políticas nacionais do livro didático, na consolidação da imprensa negra em formatos contemporâneos, na consolidação de atores/atrizes negros/negras, no cenário das artes, nas políticas afirmativas e na luta por uma educação democrática e sem racismo.
As Confluências Ética, Estéticas e Políticas..., Rui Moreira
Para discutir a expressão de uma arte viva como é a dança, cuja dramaturgia não é anotada por palavras, mas sim percebida pela subjetividade manifestada por um conjunto semiótico gestual, gostaria de utilizar as seguintes perguntas para direcionar alguns pontos de reflexão: que tipo de dança é possível existir dentro da tradição branco-centrada das danças cênicas contemporâneas feitas no Brasil que se conectam aos signos afro-orientados? É possível produzir dança negra lidando com parâmetros estruturantes de outras tradições étnicas de dança? É o corpo negro um corpo exclusivo para acontecer uma dança negra? É possível falar sobre arte sem abordar identidade?
Essas perguntas norteadoras, ou desnorteadoras, não são de fácil resposta, mas sim promotoras ou alimento para profundas e complexas reflexões, pois elas nascem da abordagem de diversos conceitos relacionados a temas que confrontam as humanidades e os seus territórios.
Teatro Experimental do Negro: Inspiração Atemporal, Vera Lopes
Se não fui diretamente “formada” pelo TEN, os princípios basilares que norteavam a conduta dos integrantes do Teatro Experimental do Negro, tais como a valorização da cultura afro-brasileira por meio da arte de representar, da dramaturgia, da educação, da estética e da comunicação escrita em formato de jornal, forjaram e formaram muitos e muitas, para além das fronteiras do Rio de Janeiro.
Assim como outras tantas atrizes negras, fui decididamente influenciada pelo brilhantismo de Ruth de Souza e Léa Garcia, para citar duas das talentosíssimas artistas contemporâneas. Ruth e Léa iniciaram com o TEN, desenvolveram carreiras longevas e premiadas, ambas ganhadoras de Kikitos, no Festival de Cinema de Gramado/RS.
O Ano em Que Levei Abdias Nascimento Para Viajar Comigo, Clayton Nascimento
Aos negros e negras do mundo, falemos sempre sobre nós, e nos apresentemos com nome e sobrenome. A história já se preocupou demasiadamente em nomear com cuidado e detalhismo muitos algozes da sobrevivência humana da Terra, então, muito provavelmente agora, a hora é de nós mesmos darmos nossos nomes às vivências, especialmente se elas forem sobre nossa caminhada. Olhar com beleza e profundidade a história do nosso povo para tornar isso um material de autonomia e conhecimento, assim como traz Abdias Nascimento em sua reflexão quando fora o primeiro senador negro do Brasil, nos tão recentes idos de 1997; assim como também defende Michel Foucault ao revelar que, para uma coisa existir, é preciso que demos nome a ela.
Tem TEN Aqui..., Denilson Tourinho
O TEN afetou o país com a sua proeza experimental que perpassa pela arte cênica, literária, visual, audiovisual, cinematográfica, musical e percorre para a educação, ativismo, política, jornalismo e por aí segue… pois a cada novo mergulho de pesquisa artística afrorreferenciada, emerge um novo, ou antigo, vestígio que remete ao TEN.
Até mesmo quando não se vê, não se diz ou não se fundamenta, é possível perceber reminiscências dos propósitos e repertórios do TEN em determinadas realizações socioculturais que matizam lutas, saberes, estéticas e poéticas brasileiras. O legado do TEN é imensurável, ultrapassa as fronteiras da memória, do tempo e do Brasil.
SUMÁRIO
Apresentação – Elisa Larkin Nascimento e Jessé Oliveira
Apresentação da Edição Original – TESTEMUNHOS
TESTEMUNHOS
Prefácio – Efrain Tomás Bó
Teatro de Negros – O Globo
Entre O’Neill e a “Pérola Negra” – Henrique Pongetti
Brancos e Negros – Henrique Pongetti
Eles Também São Filhos de Deus – Franklin de Oliveira
“O Imperador Jones” Está de Partida – Vera Pacheco Jordão
Teatro de Negros – Tomás Santa Rosa
Temporada do Teatro do Negro – R. Vieira de Mello
“Todos os Filhos de Deus Têm Asas” – Cristiano Soares
“O Moleque Sonhador” e o 2o Aniversário do Teatro do Negro – Ascendino Leite
Festival Castro Alves – Aldo Calvet
O Teatro Experimental do Negro – Tomás Santa Rosa
“O Filho Pródigo”, a Maior Peça de [19]47 – Roberto Brandão
“O Filho Pródigo”, no Teatro Negro – Rosário Fusco
Argumentos do Teatro Negro – Efrain Tomás Bó
Um Pouco da História do Teatro Experimental do Negro – A. Accioly Netto
“Aruanda” – Paschoal Carlos Magno
“Aruanda” – Edmundo Moniz
“Aruanda” – Tasso da Silveira
Objetivos do Museu do Negro – Joaquim Ribeiro
“Filhos de Santo” – Paschoal Carlos Magno
Espírito e Fisionomia do Teatro Experimental do Negro – Abdias Nascimento
O Negro no Brasil e um Exame de Consciência – Guerreiro Ramos
O Teatro do Negro no Brasil – Revista Américas – OEA
“Aruanda” – Gustavo Dória
A Propósito do Teatro Experimental do Negro – Roger Bastide
Um Herói da Negritude – Guerreiro Ramos
Metafísica Negra – Napoleão Lopes Filho
Ao Som de Atabaques e Tambores – Eneida
“O Imperador Jones” – Cavalheiro Lima
“O Imperador Jones” – Clóvis Garcia
“O Filho Pródigo” – Décio de Almeida Prado
Uma Experiência Social e Estética – Abdias Nascimento
O’Neill e o TEN – Claude Vincent
O Negro Desde Dentro – Guerreiro Ramos
O Preconceito nos Livros Infantis – Guiomar Ferreira de Mattos
Semana do Negro de 1955 – Guerreiro Ramos
Cristo de Cor – Quirino Campofiorito
Cristo Negro – Abdias Nascimento
Notas de um Diretor de “Sortilégio” – Augusto Boal
“Sortilégio” – Gerardo Mello Mourão
Abdias: O Negro Autêntico – Nelson Rodrigues
Nota Sobre “Sortilégio” e Alguns dos Problemas Que Envolveu – José Paulo Moreira da Fonseca
A Peça “Sortilégio” – Adonias Filho
O Teatro Negro – Florestan Fernandes
ENSAIO FOTOGRÁFICO JOSÉ MEDEIROS
José Medeiros e o Teatro Experimental do Negro – Elisa Larkin Nascimento e Jessé Oliveira
RESSONÂNCIAS
Breve Apresentação
A Raiz e o Horizonte: O Teatro Experimental do Negro e a Cena Brasileira Contemporânea –
Rudinei Borges dos Santos
Hilton Cobra, Entrevista – Elisa Larkin Nascimento e Jessé Oliveira
Abdias, Eterno Sol em Plena Jornada – Onisajé
Sobre Articulações Poético-Políticas: O Teatro Experimental do Negro em Movimento –
Soraya Martins Patrocínio
Espelhos Negros – Cristiane Sobral
Depoimento – Eugênio Lima
Experimentando o Teatro Negro de Antes…E de Depois! – Aldri Anunciação
Teatro Experimental do Negro: Palco do Nascedouro do Psicodrama no Brasil – Maria Célia Malaquias
Seu Abdias, A Coisa Tá Preta! – Bárbara Santos
Algumas Reflexões Sobre o TEN e o Futuro – Geo Britto
O Caráter Educativo do Teatro Experimental do Negro – Jeruse Romão
As Confluências Éticas, Estéticas e Políticas Entre Dois Projetos Políticos Negros – Rui Moreira
Teatro Experimental do Negro: Inspiração Atemporal – Vera Lopes
O Ano em Que Levei Abdias Nascimento Para Viajar Comigo – Clayton Nascimento
Tem TEN Aqui! Transitando Por Territórios, Tempos e Movimentos – Denilson Tourinho
Referências Gerais
Os Organizadores
FICHA TÉCNICA
Abdias Nascimento, Elisa Larkin Nascimento e Jessé Oliveira (orgs)
Apresentação (2025): Elisa Larkin Nascimento e Jessé Oliveira
Prefácio (1966): Efrain Thomás Bó
Coleção Perspectivas
Assunto: teatro, racismo, negritude
Impresso em brochura
15,5 x 23 cm
328 páginas
ISBN PERSPECTIVA 978-65-5505-270-1
ISBN (EDICOES SESC) 978-85-9493-356-0
R$ 85,00
Lançamento 24 nov 2025
EBOOK
ISBN 978-65-5505-271-8
1 x de R$85,00 sem juros | Total R$85,00 |